O DIÁLOGO DO CORPO-VOZ - Uma breve reflexão sobre o corpo do ator na cena do Teatro Musical.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP
DANIELLE ROSA
D.C.O.
O DIÁLOGO DO CORPO-VOZ
Uma breve reflexão sobre o corpo do ator na cena do Teatro
Musical.
São Paulo
Janeiro de 2011
APRESENTAÇÃO:
O presente trabalho pretende levantar questões e refletir sobre o trabalho do corpo do ator na interpretação deste teatro musical[1], o diálogo deste corpo com o que se propõe em cena e para isso se dará a articulação de alguns temas discutidos e textos lidos na disciplina “O texto corporal do ator em cena”, ministrada pelo professor Eduardo Coutinho no curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da - USP juntamente com a proposta de pesquisa.
O tema geral da pesquisa é a investigação da interpretação do ator em um teatro musical, partindo da reflexão da interação ou integração do texto-música e dos estímulos que a música pode trazer para o trabalho do ator-criador, tendo esta, importante papel na relação drama-música. Esta pesquisa será traçada a partir da análise e dos estudos que serão realizados na sala de ensaio concomitantemente com os estudos teóricos. A pesquisa ainda em fase inicial será relevante para a comunidade acadêmica, pois ainda há uma escassez de pressupostos teóricos em relação ao trabalho de interpretação do ator no Teatro Musical ou musicado no Brasil, tendo como diálogo o estudo da relação drama-música.
INTRODUÇÃO:
O corpo no trabalho do ator é algo de extrema presença e importância, pois é o instrumento e elo de comunicação para com o público. É com a presença corporal que o ator por meio do movimento físico e da voz se faz também na ação. A voz está para o corpo tanto quanto o corpo para a voz. Fernando Aleixo (Dez. 2004) diz: “a voz do ator existe na sabedoria do corpo. É o corpo que sabe o caminho da produção vocal, do movimento e da sua expressão” (p. 1), assim, o diálogo que este corpo trava em uma cena do Teatro Musical, não pode estar desconectado com o que se propõe vocalmente, pois o corpo é também o todo e é necessário uma relação de integração ou interação; a voz, faz parte do mesmo corpo e o que se diz corpo e voz, passa-se a dizer corpo-voz.
O teatro como a arte do encontro, da presença, do contato e da cumplicidade evidencia o corpo como
memória, como emoção, como invenção, como símbolo e poesia.
Fernando Aleixo
Cada um possui um corpo e dialoga com ele cotidianamente. Este corpo “fala” de formas distintas e sem que saibamos revela, intensifica, minimiza e dá importância para muitas de nossas ações.
No trabalho do ator, este mesmo corpo fala de forma artística e toma proporções diferentes, pois passa a ser ícone de seus personagens e mensageiro de emoções, idéias e conceitos. “Trata-se de investir numa poética da reconstrução do homem, a partir da abertura para outras possibilidades de ser” (Cassiano Sydow Quilici – PUC – SP/Unicamp - 2006. p. 2). Ele, além de ser o corpo do ser da natureza (o humano) que nasce, cresce, reproduz, vivencia e falece, se transmuta e passa a ser o corpo do ser teatralizado que além das características do corpo oferecido pela natureza, ainda artisticamente cria, recria, transfigura, transmuta, entra em conflitos dialéticos a cada criação, e, a essência deste, se revela de formas distintas na teatralidade.
No texto “El Instinto Teatral” Nicolás Evreinov (1956) fala sobre o instinto de transmutação: ...el instinto de transmutar las apariencias ofrecidas por la naturaleza, em algo distinto. Em resumen, um instinto cuya esencia se revela em lo que yo llamaría la “teatralidad” (p. 35).
Quando saímos de nosso cotidiano que também é material de estudo, criamos esta 2ª natureza: a natureza cênica que tem uma expressividade diferenciada, viva, presente e que é extra-cotidiana, há uma reorganização do corpo do ator para a cena. Esta 2ª natureza traz símbolos, ícones, signos, etc e o corpo do ator é instrumento de ligação que revela seus personagens suas histórias, seus traumas, sua personalidade e tudo isso através de signos. Além disso, pode ser elo para pista e recompensa da obra[2].
Pode-se observar que o que passaria despercebido no cotidiano, no Teatro é revelado e pode ser traduzido de muitas formas, pois a todo o momento signos e seus significantes são colocados para o público que traz inúmeras interpretações e este corpo prenhe de vida, de energia precisa estar presente para conquistar a atenção do espectador que se torna exigente quanto à obra, pois tudo capta e percebe.
No teatro musical não é diferente. Tanto no musical como em outra linha de pesquisa teatral o corpo é instrumento de trabalho, tanto como a voz. Contudo, qual o diálogo que este corpo-voz se propõe a fazer no musical com os outros elementos da cena? O que deve ser intensificado? E quanto à importância das partes, como o ator deve trabalhar isso em uma cena onde a música numa relação de interação ou integração passa a ser parte do foco?
Algumas questões como estas foram surgindo durante o semestre, pois, a cada aula, debates foram suscitando dúvidas que fizeram com que surgisse um trabalho de observação. Este trabalho parte da observação de espetáculos, aulas e práticas artísticas na qual existe a relação com a música no teatro.
A partir de algumas observações de exercícios cênicos e de espetáculos pode-se notar que alguns atores de musicais quando interpretam uma música em uma cena dão mais importância às mãos, mas muitas vezes o que parece é que as mãos estão na cena apenas de forma decorativa. Nilthe M. Pirotta (1992) em sua dissertação analisa as formas interação, integração e ocorrência incidental para estudar a relação texto-música e definir algumas questões sobre a natureza das relações entre drama e música no Teatro Ocidental. Farei uma transposição dos mesmos termos para dialogar sobre a presença do corpo do ator no Teatro Musical.
Trazendo para este caso específico os termos ficarão do seguinte modo:
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Interação é a ação recíproca entre dois elementos, neste caso o corpo está para a voz (seja canto ou fala) e a voz para o corpo e ambos para a obra;
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Integração é a união ou fusão que resulta numa forma original, ou seja, o corpo e a voz se fundem com o todo da obra para criarem o novo;
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Ocorrência Incidental é quando há a característica de ornamentação/decoração, neste caso quando o corpo ornamenta a fala ou o canto, ou vice-versa.
Pode-se dizer que quando há a fusão e corpo-voz estão conectados com os outros elementos, há uma integração, pois resulta em algo original na obra, é como se fosse uma coisa única, em uníssono, em harmonia, por exemplo: o som de uma orquestra. Você sabe que existem inúmeros instrumentos, mas como todos estão integrados (quase sempre) rumo ao objetivo maior, você vê o conjunto, o todo e mesmo que seus instrumentos necessitam de um momento para se destacar, o todo compreende e dá espaço para o individual. Isso não acontece de forma despropositada e muitos menos de forma individualista, mas sim, há um sincronismo o que a torna bela.
No Teatro musical, pode-se perceber que há uma dificuldade, pois como a música está tão presente, muitos atores “esquecem” do trabalho do diálogo corpo-voz que não está dissociado um do outro, mas ambos precisam estar juntos, dialogando, conectados, ou seja, pode haver uma integração ou interação, do corpo-voz, mas creio que estes não podem estar na cena apenas para ornamentar. A ocorrência incidental pode ser algo equivocado, pois, nada pode ser colocado em cena apenas para decorar, tudo é signo, tudo comunica nada está presente por acaso, do contrário haverá ruídos na obra descaracterizando a verdadeira obra de arte.
O que pode ser percebido em muitos espetáculos musicais é que a relação do corpo com o que está sendo discutido na fala cantada e falada muitas vezes não estabelece algo harmônico e traz ruídos para a cena como foi supracitado. Fernando Aleixo em seu artigo A voz (do) corpo: memória e sensibilidade coloca em uma passagem o seguinte:
“Quando presente, a voz revela as características que a determinam” ou, como aponta Paul Zumthor (1997. p. 14), “um corpo que fala está aí representado pela voz que dele emana, a parte mais suave deste corpo e a menos limitada, pois ela o ultrapassa, em sua dimensão acústica muito variável, permitindo todos os jogos.”
Sem atribuir juízo de valor para alguns trabalhos, pois, na arte não há certo nem errado e sim caminhos distintos, travo o debate em relação ao que pode ser transmitido, comunicado ao espectador, que recebe as informações, reflete e dialoga com que está sendo colocado em cena. Peter Book fala sobre esta questão em seu livro “A Porta aberta”, mais precisamente no capítulo “O peixe dourado”:
...cada movimento que o orador faz com o corpo, consciente ou inconscientemente, é uma forma de comunicação – como qualquer ator, tenho que ter consciência disso, é minha responsabilidade – e vocês também desempenham um papel ativo, pois dentro do seu silêncio existe um amplificador oculto que remete de volta a emoção particular de cada um através do nosso espaço comum, encorajando-me sutilmente, fazendo com que eu fale cada vez melhor. (p. 68)
Mesmo dissertando sobre uma palestra traz para o público a referência de que também é uma experiência cênica e como em toda experiência cênica tudo o que está envolvido é forma de comunicação. Portanto o ator necessita desta consciência de que tudo o que faz comunica e nada pode ser aleatório, ele precisa estar presente em cena de tal modo que irradie energia para todos os campos, fazendo com que suas idéias sejam concretizadas na ação, nas intenções para que chegue à platéia. A platéia tudo percebe e se há algo “fora do lugar” ou se houver algum ruído na cena, mesmo que seja leiga terá a sensação de estranhamento.
Andréia Aparecida (orientada por Milton de Andrade (UDESC) coloca em um de seus artigos, “Combustível do Trabalho do Ator: As Dúvidas” algo que suscita questões sobre o corpo do ator na cena e como ele transmite e comunica ao público suas idéias e as idéias da obra. Ela coloca:
...um meio eficaz, quando bem estruturado e contextualizado, com o qual o ator consegue atravessar toda a distância que há entre a sua idéia, passando pela sua imagem, intenção e energia para comunicá-la ao público. O treino, deste modo, torna-se este tempo, espaço e material ao qual o ator se dedica para confrontar-se com seu corpo, com a sua dinâmica, seu ritmo, sua textura, seu cheiro, sua cor, seu volume, seus desenhos, seus caminhos, que nada mais é se traduzirmos estes elementos para uma linguagem, a qual se pode denominar teatral, teremos os princípios pré-expressivos: energia, corpo extra-cotidiano, equilíbrio/desequilíbrio, dilatação, oposição, omissão, e ritmo. (p. 5).
O que Andréia Aparecida cita em seu trabalho rememora alguns princípios trabalhados em sala de aula e sua importância. Este corpo dialoga com tudo o que está a sua volta, com tudo que o ator possui de forma concreta e com o invisível, suas sensações, sentimentos, emoções e idéias.
O processo nas aulas práticas trouxe uma maior percepção quanto à energia do corpo com relação à presença cênica que se faz percebido e alcança um estado de alerta sem a tensão cotidiana e que pode provocar o público quando dá importância às partes sem se desconectar do todo. Marta Isaacsson de Souza e Silva no VI Congresso de Pesquisa (2010) e Pós-Graduação em Artes Cênicas em seu trabalho, “A Presença como Movimento da Cena” coloca esta questão sobre a presença do ator: “É preciso considerar que um corpo só se faz presente quando se torna corpo percebido e, assim, a presença constitui um fenômeno e não um estado. Um corpo e a percepção desse corpo são duas facetas de um mesmo fenômeno.”
Este debate é muito relevante, pois um corpo em cena só será percebido se estiver realmente presente, do contrário será apenas um corpo estranho ou ausente e talvez “desnecessário” para a platéia. Esta interpreta o que vê em cena e um corpo sem presença traz outras questões para a obra, questões estas que seus próprios idealizadores talvez não se interessem.
A questão da presença é perceptível durante o processo de criação, mas é no momento em que a cena acontece que muito se é revelado, pois como o Teatro é efêmero, o que se vê agora nunca mais se repetirá com a mesma energia, intensidade e modo, tudo muda mesmo que o espetáculo seja o mesmo e como disse Brook “A essência do Teatro reside num mistério chamado “o momento presente”.”(p. 68). E é no momento presente da cena que o ator vivencia tudo aquilo que experimentou, descobriu, vivenciou e ensaiou durante meses. É neste momento que ganha vida aos olhos do público, pois passa a ser diferente do que se é na realidade, é o extra-cotidiano, ele teatraliza seu corpo. Em cena pulsa, irradia, entra em processo de concentração para a ação e assim torna-o presente.
CONCLUSÃO:
Os estudos teórico-práticos realizados para a escrita deste trabalho ampliaram o leque de possibilidades para o desenvolvimento da pesquisa sobre a interpretação do ator no teatro musical, trazendo vertentes e possíveis formas de investigação para este mesmo tema fazendo com que outras propostas de trabalho sejam criadas.
É de extrema importância o estudo prático dentro da Pós-Graduação em Artes Cênicas, pois creio que não há diálogo somente com a teoria no âmbito das artes; teoria e prática caminham juntos, um propõe e o outro executa e ambos trazem discussões para serem debatidas de muitas formas, principalmente de forma dialética, que leva ao surgimento de outras idéias, resultando em mudanças de paradigmas, na criação de outras formas de estudos e obras de arte.
Tudo isso supracitado foi visto com calma, nos estudos teóricos e de forma ativa na ação e na observação dos processos de cada aula, pois foi o momento de experimentação, de provocação e a partir desta experiência foi aguçada a percepção para as relações do corpo do ator para com a música e com o todo da obra, principalmente no Teatro Musical que os olhares estão muito mais voltados para o trabalho com o texto-música.
BIBLIOGRAFIA:
BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
“O Peixe Dourado” In. ___A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro; pág. 68.
DECROUX, Etienne. Paroles sur le mime. Paris: Gallimard, 1963.
EVREINOV, Nicolás. El teatro en la vida. Buenos Aires. Ediciones Leviatan, 1956.
PIROTTA, Nilthe Miriam. O melos dramático: pequena introdução ao estudo das relações drama-música no teatro. S. Paulo: ECA-USP, 1992. Dissertação de mestrado.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo, Ed. Hucitec. Educ, 1997.
INTERNET:
https://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/.../andreia-milton.doc
https://www.eca.usp.br/tfc/geral20061/pdf/cquilici.pdf
https://www.geocities.ws/anateresasalgado/pista.htm
https://nilsonmarcondes.spaces.live.com/blog/cns!6D05D554DB10A6B7!213.entry
https://www.republicacenica.com.br/downloads/textos/vozdocorpo.pdf
[1] Teatro Musical de forma bem sucinta é um estilo de teatro que combina música, canções, dança, e diálogos falados, sendo eles nos moldes americanos ou não. Aqui falo do gênero em toda a sua amplitude.
[2] Termo utilizado no cinema - Uma pista é um artifício preparatório que ajuda a construir um roteiro bem estruturado. Pode ser uma fala num diálogo, um gesto de um personagem, um maneirismo, uma ação ou combinação disto tudo. A medida em que a história se desenrola, a pista é plantada algumas vezes, o que a mantém viva na mente do espectador. Em geral, perto da resolução da história, quando a situação do personagem e também o público já tiverem mudado, surge a recompensa. Na recompensa o diálogo, o gesto do personagem, o maneirismo, a ação ou seja lá o que for, adquirem novo significado.
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